Em março de 2010 escrevi um texto sobre a tia Neki. O texto comemorava o transplante de pulmão recém realizado e visava estimular à doação de órgãos. Na ocasião eu escrevi sobre a nova vida da Ana, descrevi lembranças da infância, reafirmei sobre a importância de ser doador de órgãos e do valor das pessoas em nossas vidas.
Em nenhum momento imaginei que a tia partiria em 2011, logo aqui, agora a pouco. Seis meses atrás. Eternidade para quem tem que se acostumar com a partida e aprender a suportar a saudade.
Ainda hoje, sua ausência custa-me a acreditar. Acho que me acostumei com o fato dela ser tão persistente. Uma mulher considerada doente, de saúde frágil, muitas vezes desenganada por médicos e dona de uma força imensurável que lhe ergueu inúmeras vezes de situações difíceis.
Ainda hoje, sua ausência custa-me a acreditar. Acho que me acostumei com o fato dela ser tão persistente. Uma mulher considerada doente, de saúde frágil, muitas vezes desenganada por médicos e dona de uma força imensurável que lhe ergueu inúmeras vezes de situações difíceis.
Eu não podia imaginar que depois de tanta luta, depois do sonho alcançado, do sorriso estampado em seu rosto, o tempo seria tão curto para ela.
O sabor doce de uma vida normal foi-lhe oferecido vagarosamente e na mesma proporção foi sendo tirado da sua boca.
Contudo, o tempo, essa palavra tão preciosa, tem uma interpretação muito pessoal.
Contudo, o tempo, essa palavra tão preciosa, tem uma interpretação muito pessoal.
Seis meses antes da tia receber o transplante de pulmão ela fez um tratamento rígido aqui em Porto Alegre. Precisava melhorar seu estado físico caso ainda almejasse ter um pulmão novo em seu peito.
Ela se esforçou muito para melhorar o desempenho em esteiras e outros exercícios físicos. Fez muitos exames para atualizar sua ficha médica.
Nesse período, muitas pessoas tentaram fazê-la mudar de opinião e desistir de esperar pelo órgão novo. No ambiente do hospital participou de conversas discretas sobre colegas de tratamento que iam recebendo órgãos e acabavam falecendo logo em seguida. Surgiu até um alarme falso de um possível doador que acabou não dando certo. Na época ficamos todos chateados, porém ficamos esperançosos da proximidade do transplante. Haviam sinais. Era fato anunciado. A espera estava chegando ao fim.
Logo após a tia sair do hospital, uns 40 dias após o transplante, nós familiares e amigos começamos vagarosamente a missão de tentar realizar seus desejos. Não que ela deixasse claro suas intenções, mas era difícil controlar a nossa ansiedade. É como passear a primeira vez com um bebê recém nascido. Queremos mostrá-lo ao mundo inteiro e o mundo inteiro queremos mostrar a ele. Com a tia era uma sensação parecida. A primeira aventura foi fazer um tour por Porto Alegre, pois embora ela tenha vindo muitas vezes para a Capital nos últimos anos nunca havia saído do roteiro do hospital.
E lá fomos nós. Carro cheio. Bobagens para ir comendo. Deu para ti baixo astral! Laçador, aeroporto, gasômetro, orla do Guaíba, museu ibirê, estádio dos eucaliptos, bairro menino Deus. Quando estávamos chegando perto do estádio Beira Rio(colorada fanática), sem ela saber onde estava pedimos que ela tapasse o nariz pois o cheiro que ela iria sentir poderia prejudicar seriamente seu novo pulmão. Preocupada, ela atendeu rapidamente o pedido. Rimos por longo período quando ela descobriu a "pegadinha".
Nossa alegria foi maior quando passamos no Olímpico Monumental e ela elogiou, achou mais bonito que o do time dela. Humildade. Lembro que estava escurecendo e a tia ainda não podia descer do carro mas consegui notar o brilho dos seus olhos azuis, tentando assimilar tudo e curtir ao máximo aquele momento.
Ela sabia que aquele transplante seria um divisor de águas e que a vida a partir dali seria diferente.
Ela sabia que aquele transplante seria um divisor de águas e que a vida a partir dali seria diferente.
O primeiro passeio em que realmente ela pôde ficar livre foi num encontro com as famílias de crianças especiais – Síndrome de Angelman – síndrome do meu filho João Victor. Foi num domingo de Grenal, ensolarado dia de abril. Acordou cedo, preparou pastéis maravilhosos e apreciou cada segundo do passeio. Subiu e desceu escadas, mirou o Rio Guaíba de pertinho. Pegou o Vicente no colo e também o flagrou “surrupiando” pastéis da mesa antes da liberação do lanche. Recebeu abraços e beijos das famílias que parabenizaram e se admiravam dela estar já naquele ritmo com apenas 45 dias de transplantada.
Acima de tudo a tia gostava de estar entre crianças especiais. Era uma relação de compreensão recíproca, de maneira subentendida uns entendiam as limitações dos outros.
Num momento do encontro ela pegou uma cadeira e sentou-se perto delas, num espaço improvisado que fizemos no chão, no meio de um monte de brinquedos. O João encostou-se às pernas dela que pousou a mão direita na sua cabeça e ali permaneceram por um bom tempo, observando toda aquela cena de comunhão. Seu olhar transmitia serenidade e paz, parecia estar agradecendo por estar viva e com fôlego. Essa cena é o tipo de imagem que fica marcada na memória da gente para sempre. De longe tirei uma foto. Eu mal conseguia disfarçar o orgulho que sentia da minha tia. Orgulho por ela não ter se tornado uma mulher revoltada e amargurada pelas adversidades que a vida lhe apresentou. Por ter sido perseverante, corajosa e confiante. Orgulho por ela simplesmente ter aprendido a enxergar sua doença como uma missão e não como um castigo. Enfim, um exemplo para mim que também enfrento um situação delicada na vida: um filho com deficiência.
“Mesmo que a vida não seja a festa que imaginamos não vamos deixar de dançar”.
A tia estava reencantada pelo mundo. Lembrei de quando eu tinha 15 anos e coloquei óculos pela primeira vez. Era um mundo que eu desconhecia latejando na minha frente... cores vibrantes, formas demarcadas, pessoas bem definidas. A tia parecia uma míope usando óculos pela primeira vez. Deslumbrada e degustando o sabor da vitória de uma forma muito calma. Para que pressa? Nós bem sabemos que às vezes é um detalhe que faz a diferença em qualquer situação. Um sim ou um não. Um te amo, ou um não te amo mais. Apenas um movimento ou quem sabe até o silêncio e a nossa vida se transforma, muda a direção e nos posiciona num caminho que não podemos voltar atrás. A vida é feita de escolhas e muitas vezes nem percebemos que as fazemos o tempo todo e nem apreciamos o nossa viagem. Quase todos os dias perdemos oportunidades, pessoas, momentos. Então, será que perdemos ou talvez essas perdas repentinas façam parte do traçado das nossas vidas? Existências? Destinos? Missões?
Em dois momentos antes da cirurgia de transplante a tia foi questionada e pressionada a decidir sobre a sua vida. Permaneceria na lista de espera? E posteriormente, estaria pronta para o transplante? Cada vez que ela era internada se tornava mais difícil combater suas infecções. Seus pulmões eram como esponjas fixando tudo de ruim que existe na atmosfera.
Os médicos alertavam que seu estado cada vez se agravava mais e cada infecção que ela pegava mais destruído ficava seu debilitado pulmão. Na encruzilhada da sua vida ela silenciou. Na verdade ela precisou decidir que estrada iria percorrer. Tentaria viver ou desistiria da vida e esperaria pacientemente o dia de sua morte?
Os médicos alertavam que seu estado cada vez se agravava mais e cada infecção que ela pegava mais destruído ficava seu debilitado pulmão. Na encruzilhada da sua vida ela silenciou. Na verdade ela precisou decidir que estrada iria percorrer. Tentaria viver ou desistiria da vida e esperaria pacientemente o dia de sua morte?
Ela sempre me dizia que uma das coisas que queria fazer quando estivesse livre do oxigênio artificial seria ir à pracinha com meus dois guris. Queria brincar com eles. E ela cumpriu o que prometeu. Foi na pracinha, no parque de diversões, caminhou no gasômetro e lá foi minha companheira numa feira de artesanato enquanto outra parte da família esperava lá fora. Nessa feira ela se encantou com uma enorme vela decorada feita artesanalmente por uma freira. Naquele momento não tínhamos dinheiro suficiente e desistiu de adquirir a bela vela. No caminho de volta para o carro me confidenciou que estava realizada pela possibilidade de poder passear e escolher presentes para si e para os outros sem que isso fosse um sacrifício. Não resisti e nem pensei duas vezes, enrolei o pessoal e fui buscar a vela para ela.
Ela já estava conformada. Acostumada a aceitar. A tia tinha o dom da paciência e não se lamentava. E isso é uma das coisas que mais me comove quando me lembro dela e da sua história. O dom de saber esperar. Não foi só o transplante que ela esperou, mais do que isso ela esperava as pessoas.
Não é novidade para ninguém que a tia tinha poucas condições de ir e vir. Medo de ficar sem oxigênio, de se sentir mal, de atrapalhar a vida dos outros. O modo de se sentir amada era as visitas que sempre chegavam a sua casa. Dificilmente ela estava sozinha, graças a Deus. Tinha um jeito especial e sutil de demonstrar que gostava da presença de alguém. Sem cobranças exageradas. E para muitos era imperceptível o quanto ela esperava os amigos, as conversas e os carinhos daqueles que a visitavam.
Não é novidade para ninguém que a tia tinha poucas condições de ir e vir. Medo de ficar sem oxigênio, de se sentir mal, de atrapalhar a vida dos outros. O modo de se sentir amada era as visitas que sempre chegavam a sua casa. Dificilmente ela estava sozinha, graças a Deus. Tinha um jeito especial e sutil de demonstrar que gostava da presença de alguém. Sem cobranças exageradas. E para muitos era imperceptível o quanto ela esperava os amigos, as conversas e os carinhos daqueles que a visitavam.
As pessoas eram sua janela para o mundo. Traziam consigo histórias que ela transformava em contos de motivação e superação. Com o tempo que tinha para ficar pensando sobre elas, logo uma simples história virava uma fábula em suas mãos e eram transmitidas aos visitantes na dose certa do que cada um precisava ouvir no momento. A tia era uma guardiã de histórias.
Fico aqui pensando no quanto a maioria de nós vive num ritmo acelerado, com pouca concentração, esquecendo que é preciso desacelerar e dar mais atenção as pessoas ao nosso redor. Corremos tanto, é tanta informação à nossa volta, tanto lugar para ir, tanta coisa para obter, desejar, almejar, viver, que sem perceber esquecemos das pessoas e andamos sem foco buscando cessar uma ansiedade insaciável.
A tia não reclamava com frequência, era uma pessoa resignada. Tudo que ela fazia aos outros não esperava nada em troca. Sempre lembrava datas de aniversários e alegrou muitas pessoas com seus telefonemas. Mas ela sentia falta das pessoas, pois elas eram o maior motivo de sua existência e insistência. Eram os amigos que alimentavam a sua fé.
A memória dela era veloz e completamente funcional. Por mais que ficássemos tempo sem vê-la, ela ficava lembrando e relembrando os encontros passados. Essa forma inusitada de viver a mantinha firme no seu propósito de continuar a luta.
O outono passou e durante alguns meses a vida dela estava indo bem. Mesmo com toneladas de remédios que precisa tomar para não ter rejeição do órgão transplantado. Tudo valia a pena.
“Não sinto mais falta de ar! Não sentirei mais falta de ar. Estou muito feliz.”
Às vezes ela fugia e ia no comércio da Avenida São Pedro. Para desespero geral da nação e orgulho dos médicos que com devidos cuidados queriam que ela se movimentasse mais e reconquistasse sua independência. Visitava farmácias, mercados, lojinhas. Sozinha! Algumas vezes pegou táxi e ônibus para o tratamento na Santa casa. Era difícil entender o sabor disso. Só pensávamos no que podia acontecer, nas bactérias, nisso e naquilo. Mas ela queria sentir sua liberdade e encorajada por alguns médicos se sentia mais confiante. Ir e vir sem depender de ninguém. Quem poderia julgá-la?
Quando vivemos com adversidades em nossas vidas são nas pequenas coisas que se revelam as grandes recompensas. Imensurável para alguns de nós.
Numa dessas saídas sozinha, ela foi numa ótica e comprou-me um presente: um escapulário, que se tornou um talismã, um pedaço dela perto do meu coração.
Foi logo no início do inverno que surgiu a primeira infecção. E o jogo começou a virar.
Primeiro surgiram febres, diagnósticos errados de que a causa de sua febre seria uma depressão. Então retornou a temida falta de ar e por último a revelação da bronquiectasia estar voltando repentinamente...
Eu posso quase acertar que foi na última parte que a tia começou a perder a força. Um desânimo começou a invadir sua alma.
E para piorar surgiram alguns comentários inconvenientes de que ela não deveria ter feito o transplante, que haviam avisado que poderia não dar certo, que sua idade era avançada para tamanho procedimento, que não havia valido a pena o transplante.
Invadida por uma resistente bactéria e também por algo ainda mais forte que a infecção: o abatimento físico e mental, tentávamos inutilmente animá-la.
A Val sempre com seu discurso otimista tentava encorajar a tia. Mesmo massacrada por dentro ao ver o sofrimento da mãe, não baixava a cabeça e estava sempre em busca de informações e ajuda espiritual.
A tia poupava a minha prima de muitas verdades sobre a sua real condição médica. As mães são capazes de mentir para proteger seu filho e amenizar sua dor. As mães disfarçam a dor.
A Val sempre com seu discurso otimista tentava encorajar a tia. Mesmo massacrada por dentro ao ver o sofrimento da mãe, não baixava a cabeça e estava sempre em busca de informações e ajuda espiritual.
A tia poupava a minha prima de muitas verdades sobre a sua real condição médica. As mães são capazes de mentir para proteger seu filho e amenizar sua dor. As mães disfarçam a dor.
A pedido de minha mãe e da Val, fui ver a tia na emergência lotada da Santa casa. A tia estava dormindo de lado para uma parede, em estado febril, sufocada, olhar aflito . Beijei seu rosto, peguei suas mãos e pedi que Deus me guiasse nas palavras.
-Eu sei que você está triste e desanimada e sinto-me egoísta de estar aqui pedindo que continue lutando, mas não deixe ninguém dizer que não valeu à pena a sua decisão!Isso machucou muito você né tia?
Ela assentiu com a cabeça. Sentei-me na beira de seu leito e continuei.
- Ninguém tem esse direito. Ninguém. Sabe Tia, se eu soubesse que existe uma chance para o meu João. Uma cirurgia do outro lado do mundo, um experimento genético, uma máquina cerebral.Algo que desse a ele a chance de caminhar e falar por um dia, um ano ou para sempre. Mesmo sem a certeza da durabilidade, mesmo com efeitos colaterais ou pós operatórios difíceis, mesmo que depois ele fosse perdendo a funcionalidade novamente. Eu faria tudo para vê-lo sair correndo como qualquer criança, me contando histórias mirabolantes que elas criam, me chamando de mamãe.
Pausa. Baixei a cabeça e respirei fundo.
- Eu faria tudo mesmo que fosse por um dia.
Continuei falando emocionada:
- Só nós sabemos o valor dessas escolhas tia. A possibilidade de vencer o improvável. Nós que somos prisioneiros das adversidades, somos também reféns da nossa dor e somente nós podemos calcular o preço da nossa liberdade. Eu sou as pernas do meu filho, eu sou também a sua voz, e então às vezes sinto os desejos dele também. Fui eu quem esteve com ele na beira da morte e vi um milagre acontecer. As mãos dos médicos só podem ir até onde estão as mãos de Deus.Não aceito que as pessoas julguem o que não viveram, o que não experimentaram, o que não sentiram!
Olhei para ela e finalizei:
-Então tia, por favor, você pode até mesmo desistir da vida mas não esqueça dos meses maravilhosos em que viveu esse ano.Seja grata a si mesma por ter tido coragem de seguir o seu coração. Só você sabe o que viveu. Valeu a pena.
Ela virou para mim e sorriu. Me despedi e quando estava me direcionando para a porta ela me disse quase sussurando:
- Valeu a pena sim! Vai dar tudo certo Luciana. Obrigado.
{Continua}