segunda-feira, 17 de outubro de 2011

A platéia I

Em março de 2010 escrevi um texto sobre a tia Neki. O texto comemorava o transplante de pulmão recém realizado e visava estimular à doação de órgãos. Na ocasião eu escrevi sobre a nova vida da Ana, descrevi lembranças da infância, reafirmei sobre a importância de ser doador de órgãos e do valor das pessoas em nossas vidas.
Em nenhum momento imaginei que a tia partiria em 2011, logo aqui, agora a pouco. Seis meses atrás. Eternidade para quem tem que se acostumar com a partida e aprender a suportar a saudade.
Ainda hoje, sua ausência custa-me a acreditar. Acho que me acostumei com o fato dela ser tão persistente. Uma mulher considerada doente, de saúde frágil, muitas vezes desenganada por médicos e dona de uma força imensurável que lhe ergueu inúmeras vezes de situações difíceis.  
Eu não podia imaginar que depois de tanta luta, depois do sonho alcançado, do sorriso estampado em seu rosto, o tempo seria tão curto para ela.
O sabor doce de uma vida normal foi-lhe oferecido vagarosamente e na mesma proporção foi sendo tirado da sua boca.
Contudo, o tempo, essa palavra tão preciosa, tem uma interpretação muito pessoal.
Seis meses antes da tia receber o transplante de pulmão ela fez um tratamento rígido aqui em Porto Alegre. Precisava melhorar seu estado físico caso ainda almejasse ter um pulmão novo em seu peito.
Ela se esforçou muito para melhorar o desempenho em esteiras e outros exercícios físicos. Fez muitos exames para atualizar sua ficha médica.
Nesse período, muitas pessoas tentaram fazê-la mudar de opinião e desistir de esperar pelo órgão novo. No ambiente do hospital participou de conversas discretas sobre colegas de tratamento que iam recebendo órgãos e acabavam falecendo logo em seguida. Surgiu até um alarme falso de um possível doador que acabou não dando certo. Na época ficamos todos chateados, porém ficamos esperançosos da proximidade do transplante. Haviam sinais. Era fato anunciado. A espera estava chegando ao fim.
Logo após a tia sair do hospital, uns 40 dias após o transplante, nós familiares e amigos começamos vagarosamente a missão de tentar realizar seus desejos. Não que ela deixasse claro suas intenções, mas era difícil controlar a nossa ansiedade. É como passear a primeira vez com um bebê recém nascido.  Queremos mostrá-lo ao mundo inteiro e o mundo inteiro queremos mostrar a ele. Com a tia era uma sensação parecida. A primeira aventura foi fazer um tour por Porto Alegre, pois embora ela tenha vindo muitas vezes para a Capital nos últimos anos nunca havia saído do roteiro do hospital.
E lá fomos nós. Carro cheio. Bobagens para ir comendo. Deu para ti baixo astral!  Laçador, aeroporto, gasômetro, orla do Guaíba, museu ibirê, estádio dos eucaliptos, bairro menino Deus. Quando estávamos chegando perto do estádio Beira Rio(colorada fanática), sem ela saber onde estava pedimos que ela tapasse o nariz pois o cheiro que ela iria sentir poderia prejudicar seriamente seu novo pulmão. Preocupada, ela atendeu rapidamente o pedido. Rimos por longo período quando ela descobriu a "pegadinha".
Nossa alegria foi maior quando passamos no Olímpico Monumental e ela elogiou, achou mais bonito que o do time dela. Humildade. Lembro que estava escurecendo e a tia ainda não podia descer do carro mas consegui notar o brilho dos seus olhos azuis, tentando assimilar tudo e curtir ao máximo aquele momento.
Ela sabia que aquele transplante seria um divisor de águas e que a vida a partir dali seria diferente.  
O primeiro passeio em que realmente ela pôde ficar livre foi num encontro com as famílias de crianças especiais – Síndrome de Angelman – síndrome do meu filho João Victor. Foi num domingo de Grenal, ensolarado dia de abril. Acordou cedo, preparou pastéis maravilhosos e apreciou cada segundo do passeio. Subiu e desceu escadas, mirou o Rio Guaíba de pertinho. Pegou o Vicente no colo e também o flagrou “surrupiando” pastéis da mesa antes da liberação do lanche.  Recebeu abraços e beijos das famílias que parabenizaram e se admiravam dela estar já naquele ritmo com apenas 45 dias de transplantada.
Acima de tudo a tia gostava de estar entre crianças especiais. Era uma relação de compreensão recíproca, de maneira subentendida uns entendiam as limitações dos outros.
Num momento do encontro ela pegou uma cadeira e sentou-se perto delas, num espaço improvisado que fizemos no chão, no meio de um monte de brinquedos.  O João encostou-se às pernas dela que pousou a mão direita na sua cabeça e ali permaneceram por um bom tempo, observando toda aquela cena de comunhão. Seu olhar transmitia serenidade e paz, parecia estar agradecendo por estar viva e com fôlego. Essa cena é o tipo de imagem que fica marcada na memória da gente para sempre. De longe tirei uma foto. Eu mal conseguia disfarçar o orgulho que sentia da minha tia. Orgulho por ela não ter se tornado uma mulher revoltada e amargurada pelas adversidades que a vida lhe apresentou. Por ter sido perseverante, corajosa e confiante. Orgulho por ela simplesmente ter aprendido a enxergar sua doença como uma missão e não como um castigo. Enfim, um exemplo para mim que também enfrento um situação delicada na vida: um filho com deficiência.
“Mesmo que a vida não seja a festa que imaginamos não vamos deixar de dançar”.
A tia estava reencantada pelo mundo.  Lembrei de quando eu tinha 15 anos e coloquei óculos pela primeira vez.  Era um mundo que eu desconhecia latejando na minha frente... cores vibrantes, formas demarcadas, pessoas bem definidas. A tia parecia uma míope usando óculos pela primeira vez. Deslumbrada e degustando o sabor da vitória de uma forma muito calma. Para que pressa? Nós bem sabemos que às vezes é um detalhe que faz a diferença em qualquer situação. Um sim ou um não. Um te amo, ou um não te amo mais. Apenas um movimento ou quem sabe até o silêncio e a nossa vida se transforma, muda a direção e nos posiciona num caminho que não podemos voltar atrás. A vida é feita de escolhas e muitas vezes nem percebemos que as fazemos o tempo todo e nem apreciamos o nossa viagem. Quase todos os dias perdemos oportunidades, pessoas, momentos. Então, será que perdemos ou talvez essas perdas repentinas façam parte do traçado das nossas vidas? Existências? Destinos? Missões?
Em dois momentos antes da cirurgia de transplante a tia foi questionada e pressionada a decidir sobre a sua vida. Permaneceria na lista de espera? E posteriormente, estaria pronta para o transplante? Cada vez que ela era internada se tornava mais difícil combater suas infecções. Seus pulmões eram como esponjas fixando tudo de ruim que existe na atmosfera.
Os médicos alertavam que seu estado cada vez se agravava mais e cada infecção que ela pegava mais destruído ficava seu debilitado pulmão. Na encruzilhada da sua vida ela silenciou. Na verdade ela precisou decidir que estrada iria percorrer. Tentaria viver ou desistiria da vida e esperaria pacientemente o dia de sua morte?
Ela sempre me dizia que uma das coisas que queria fazer quando estivesse livre do oxigênio artificial seria ir à pracinha com meus dois guris. Queria brincar com eles.   E ela cumpriu o que prometeu. Foi na pracinha, no parque de diversões, caminhou no gasômetro e lá foi minha companheira numa feira de artesanato enquanto outra parte da família esperava lá fora. Nessa feira ela se encantou com uma enorme vela decorada feita artesanalmente por uma freira. Naquele momento não tínhamos dinheiro suficiente e desistiu de adquirir a bela vela.  No  caminho de volta para o carro me confidenciou que estava realizada pela possibilidade de poder passear e escolher presentes para si e para os outros sem que isso fosse um sacrifício. Não resisti e nem pensei duas vezes, enrolei o pessoal e fui buscar a vela para ela.
Ela já estava conformada. Acostumada a aceitar.  A tia tinha o dom da paciência e não se lamentava. E isso é uma das coisas que mais me comove quando me lembro dela e da sua história. O dom de saber esperar. Não foi só o transplante que ela esperou, mais do que isso ela  esperava as pessoas.
Não é novidade para ninguém que a tia tinha poucas condições de ir e vir. Medo de ficar sem oxigênio, de se sentir mal, de atrapalhar a vida dos outros. O modo de se sentir amada era as visitas que sempre chegavam a sua casa. Dificilmente ela estava sozinha, graças a Deus. Tinha um jeito especial e sutil de demonstrar que gostava da presença de alguém.  Sem cobranças exageradas. E para muitos era imperceptível o quanto ela esperava os amigos, as conversas e os carinhos daqueles que a visitavam.
As pessoas eram sua janela para o mundo. Traziam consigo histórias que ela transformava em contos de motivação e superação. Com o tempo que tinha para ficar pensando sobre elas, logo uma simples história virava uma fábula em suas mãos e eram transmitidas aos visitantes na dose certa do que cada um precisava ouvir no momento. A tia era uma guardiã de histórias.
Fico aqui pensando no quanto a maioria de nós vive num ritmo acelerado, com pouca concentração, esquecendo que é preciso desacelerar e dar mais atenção as pessoas ao nosso redor. Corremos tanto, é tanta informação à nossa volta, tanto lugar para ir, tanta coisa para obter, desejar, almejar, viver, que sem perceber esquecemos das pessoas e andamos sem foco buscando cessar uma ansiedade insaciável.
A tia não reclamava com frequência, era uma pessoa resignada. Tudo que ela fazia aos outros não esperava nada em troca. Sempre lembrava datas de aniversários e alegrou muitas pessoas com seus telefonemas. Mas ela sentia falta das pessoas, pois elas eram o maior motivo de sua existência e insistência. Eram os amigos que alimentavam a sua fé.
A memória dela era veloz e completamente funcional. Por mais que ficássemos tempo sem vê-la, ela ficava lembrando e relembrando os encontros passados. Essa forma inusitada de viver a mantinha firme no seu propósito de continuar a luta.
O outono passou e durante alguns meses a vida dela estava indo bem. Mesmo com toneladas de remédios que precisa tomar para não ter rejeição do órgão transplantado. Tudo valia a pena.
“Não sinto mais falta de ar! Não sentirei mais falta de ar. Estou muito feliz.”
Às vezes ela fugia e ia no comércio da Avenida São Pedro.  Para desespero geral da nação e orgulho dos médicos que com devidos cuidados queriam que ela se movimentasse mais e reconquistasse sua independência. Visitava farmácias, mercados, lojinhas. Sozinha! Algumas vezes pegou táxi e ônibus para o tratamento na Santa casa. Era difícil entender o sabor disso. Só pensávamos no que podia acontecer, nas bactérias, nisso e naquilo. Mas ela queria sentir sua liberdade e encorajada por alguns médicos se sentia mais confiante. Ir e vir sem depender de ninguém. Quem poderia julgá-la?
Quando vivemos com adversidades em nossas vidas são nas pequenas coisas que se revelam as grandes recompensas. Imensurável para alguns de nós.
Numa dessas saídas sozinha, ela foi numa ótica e comprou-me um presente: um escapulário, que se tornou um talismã, um pedaço dela perto do meu coração.
Foi logo no início do inverno que surgiu a primeira infecção. E o jogo começou a virar.
Primeiro surgiram febres, diagnósticos errados de que a causa de sua febre seria uma depressão. Então retornou a temida falta de ar e por último a revelação da bronquiectasia estar voltando repentinamente...
Eu posso quase acertar que foi na última parte que a tia começou a perder a força. Um desânimo começou a invadir sua alma.
E para piorar surgiram alguns comentários inconvenientes de que ela não deveria ter feito o transplante, que haviam avisado que poderia não dar certo, que sua idade era avançada para tamanho procedimento, que não havia valido a pena o transplante.
Invadida por uma resistente bactéria e também por algo ainda mais forte que a infecção: o abatimento físico e mental, tentávamos inutilmente animá-la.
A Val sempre com seu discurso otimista tentava encorajar a tia. Mesmo massacrada por dentro ao ver o sofrimento da mãe, não baixava a cabeça e estava sempre em busca de informações e ajuda espiritual.
A tia poupava a minha prima de muitas verdades sobre a sua real condição médica. As mães são capazes de mentir para proteger seu filho e amenizar sua dor.  As mães disfarçam a dor.
A pedido de minha mãe e da Val, fui ver a tia na emergência lotada da Santa casa. A tia estava dormindo de lado para uma parede, em estado febril, sufocada, olhar aflito .  Beijei seu rosto, peguei suas mãos e pedi que Deus me guiasse nas palavras.
-Eu sei que você está triste e desanimada e  sinto-me egoísta de estar aqui pedindo que continue lutando, mas não deixe ninguém dizer que não valeu à pena a sua decisão!Isso machucou muito você né tia?
Ela assentiu com a cabeça. Sentei-me na beira de seu leito e continuei.
- Ninguém tem esse direito. Ninguém. Sabe Tia, se eu soubesse que existe uma chance para o meu João. Uma cirurgia do outro lado do mundo, um experimento genético, uma máquina cerebral.Algo que desse a ele a chance de caminhar e falar por um dia, um ano ou para sempre.  Mesmo sem a certeza da durabilidade, mesmo com efeitos colaterais ou pós operatórios difíceis, mesmo que depois ele fosse perdendo a funcionalidade novamente. Eu faria tudo para vê-lo sair correndo como qualquer criança, me contando histórias mirabolantes que elas criam, me chamando de mamãe.
Pausa. Baixei a cabeça e respirei fundo.
- Eu faria tudo mesmo que fosse por um dia.
Continuei falando emocionada:
- Só nós sabemos o valor dessas escolhas tia. A possibilidade de vencer o improvável. Nós que somos prisioneiros das adversidades, somos também reféns da nossa dor e somente nós podemos calcular o preço da nossa liberdade. Eu sou as pernas do meu filho, eu sou também a sua voz, e então às vezes sinto os desejos dele também. Fui eu quem esteve com ele na beira da morte e vi um milagre acontecer. As mãos dos médicos só podem ir até onde estão as mãos de Deus.Não aceito que as pessoas julguem o que não viveram, o que não experimentaram, o que não sentiram!
Olhei para ela e finalizei:
-Então tia, por favor, você pode até mesmo desistir da vida mas não esqueça dos meses maravilhosos em que viveu esse ano.Seja grata a si mesma por ter tido coragem de seguir o seu coração.  Só você sabe o que viveu. Valeu a pena.  
Ela virou para mim e sorriu. Me despedi  e quando estava me direcionando para a porta ela me disse quase sussurando:
- Valeu a pena sim!  Vai dar tudo certo Luciana. Obrigado.




{Continua}

A platéia II

Depois daquela internação ela chegou a se recuperar bem e aproveitou mais um pouco até o final do ano, mas nos primeiros dias de 2011 ela se sentiu muito mal, foi internada e não saiu mais da UTI. Entrou em coma induzido,  inchou, traqueostomia. Acordou, sentou, conversou com mímicas, trocou bilhetes carinhosos com a Val. Tratamentos com fortes antibióticos, organismo debilitado, infecção que foi invadindo todo o seu organismo e ela faleceu. Simples assim?Não.
Ela lutou tanto e mesmo tomada por infecção generalizada ela não queria partir.
A última vez que vi a tia acordada numa tarde quente de janeiro, ela segurava firme minha mão durante as múltiplas tentativas de colocar o cateter para alimentação por sonda. Após as enfermeiras desistirem ela me declarou que estava cansada. Cansada de lutar.Cansada de falta de ar. Cansada do perigo intermitente da morte.
Para distraí-la li trechos de um livro que se chama “O convite” de Oriah Montain.
"Não me importa saber como você ganha a vida.
Quero saber o que mais deseja e se ousa sonhar em
satisfazer seus anseios do seu coração.
Não me interessa saber sua idade.
Quero saber se você correria o risco de parecer tolo por amor,
pelo seu sonho, pela aventura de estar vivo.
Não me interessa saber que planetas estão em quadratura com sua lua.
O que eu quero saber é se você já foi até o fundo de sua própria tristeza,
se as traições da vida o enriqueceram
ou se você se retraiu e se fechou, com medo de mais dor.
Quero saber se você consegue conviver com a dor,
a minha ou a sua, sem tentar escondê-la, disfarçá-la ou remediá-la.
Quero saber se você é capaz de conviver com a alegria,
a minha ou a sua, de dançar com total abandono
e deixar o êxtase penetrar até a ponta dos seus dedos,
sem nos advertir que sejamos cuidadosos, que sejamos realistas,
que nos lembremos das limitações da condição humana.
Não me interessa se a história que você me conta é verdadeira.
Quero saber se é capaz de desapontar o outro para se manter fiel a si mesmo.
Se é capaz de suportar uma acusação de traição e não trair sua própria alma,
ou ser infiel e, mesmo assim, ser digno de confiança.
Quero saber se você é capaz de enxergar a beleza no dia-a-dia,
ainda que ela não seja bonita,
e fazer dela a fonte da sua vida.
Quero saber se você consegue viver com o fracasso, o seu e o meu,
e ainda assim pôr-se de pé na beira do lago
e gritar para o reflexo prateado da lua cheia: "Sim!"
Não me interessa saber onde você mora ou quanto dinheiro tem.
Quero saber se, após uma noite de tristeza e desespero,
exausto e ferido até os ossos, é capaz de fazer o que precisa ser feito
para alimentar seus filhos.
Não me interessa quem você conhece ou como chegou até aqui.
Quero saber se vai permanecer no centro do fogo comigo sem recuar.
Não me interessa onde, o que ou com quem estudou.
Quero saber o que o sustenta, no seu íntimo, quando tudo mais desmorona.
Quero saber se é capaz de ficar só consigo mesmo e se
nos momentos vazios realmente gosta da sua companhia."

A parte mais linda dessa história foi o tempo que a tia e minha prima tiveram para se despedir. A velha prorrogação(e dádiva) que poucos ganham na reta final. A preciosidade do tempo dedicado somente aquilo que importa. Hora de perdoar, de demonstrar os sentimentos, de se comunicar pelo olhar. Hora da presença do amor e nada mais. A grande lição.
Três meses depois de altos e baixos, na UTI com infecção generalizada,  dois dias antes de sua força esgotar, eu li para ela uma carta de despedida.

TUDO PASSARÁ
Todas as coisas, na Terra, passam... Os dias de dificuldades, passarão...
Passarão também os dias de amargura e solidão... As dores e as lágrimas passarão.
As frustrações que nos fazem chorar... um dia passarão. A saudade do ser querido que está longe, passará.
Dias de tristeza... Dias de felicidade...São lições necessárias que, na Terra, passam, deixando no espírito imortal as experiências acumuladas.
Se hoje para nós, é um desses dias repletos de amargura, paremos um instante.
Elevemos o pensamento ao Alto, e busquemos a voz suave da Mãe amorosa a dizer-nos carinhosamente: isso também passará...
E guardemos a certeza, pelas próprias dificuldades já superadas que não há mal que dure para sempre.
O planeta Terra, semelhante a uma enorme embarcação, às vezes parece que vai soçobrar diante das turbulências de gigantescas ondas.
Mas isso também passará, porque Jesus está no leme dessa Nau, segue com o olhar sereno de quem guarda a certeza de que a agitação faz parte do roteiro evolutivo da humanidade, e que um dia também passará...
Ele sabe que a Terra chegará a porto seguro, porque esse é o seu destino. Assim, façamos a nossa parte o melhor que puderem, sem esmorecimento, e confiemos em Deus, aproveitando cada segundo, cada minuto que, por certo... também passarão..."

Tudo passa..........excepto DEUS!
Deus é o suficiente!
(Emmanuel/ Chico Xavier)

Nos últimos minutos ao lado da tia, subi uma escadinha para alcançar o seu ouvido e falei baixinho o que estava sentindo.
"A vida é um ir e vir. Isso é desígnio de Deus. Hora de partida também é hora de chegada. Paz. Chega de sofrer...Voe passarinho, voe para teu ninho. O ninho de Deus."

É impressionante como a vida e a morte estão dividas por uma linha tênue.
Então, você se dá conta que a vida não é nada mais que um palco, um cenário. E que a cortina um dia ou outro vai descer e o espetáculo vai terminar.Exatamente como na cerimônia de cremação da tia Neki. Não podemos controlar a duração. Só o que podemos fazer é subir lá e deixar acontecer.
Aprendi que o sucesso de uma vida não é medido pelo quanto você ganhou na bilheteria do seu espetáculo. A sua vida teve sentido e propósito se  você deixou a marca registrada na alma da sua platéia. E o que se leva dessa vida é o amor que conquistamos dos outros.
Definitivamente, três meses depois da sua morte, certifico que a tia conseguiu essa façanha. Na voz ainda entrelaçada do meu menino caçula surge a pergunta:
- Mamãe, cadê a tia Neki?
Desprevenida com a pergunta, fico com nó na garganta e ele mesmo se responde:
- Está dormindo com o papai do céu e as florzinhas caindo na cama dela.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Amigos que são para sempre



Em março de 1997 subindo a Avenida Presidente Vargas em Santa Maria, ouvi uma pessoa me chamando. Devia ser o meu 2º dia de aula na cidade. Lembro que era tudo um pouco assustador.
-Ei,.... psiu!Colega!
Olho para trás e vejo aquela menina de cabelos longos e escuros com um largo sorriso estampado– sua marca registrada.
- Acho que moramos perto uma da outra. Podemos vir juntas para casa.
- Claro! Respondi. Feliz por estar iniciando uma amizade na cidade universitária.
Nós tínhamos 15 anos de idade. E agora, estamos com quase 30 anos na cara! Desde aquele dia a Fabi faz parte da minha vida. Ela é daquele tipo de pessoa que te inspira a se tornar alguém melhor, de buscar teus sonhos e realizações, te ilumina, te motiva, que acredita em ti e enquanto todas as pessoas estão exaltando teus defeitos e erros, ela vai estar te lembrando tuas vitórias e teus pontos fortes. Sem dúvida nenhuma é a pessoa mais justa que conheço na vida.
Para ela contei meus maiores segredos de adolescência, chorei por amor não correspondido, dividi muitos momentos de estudo, de passeios, de descobertas e micos.
Sempre tivemos muitas coisas em comum. Além de sermos do “interior” do Rio Grande do Sul, e meninas sem frescuras, simples no modo de ser, únicas filhas mulheres entre três irmãos(e caçulas para completar) , e  além do mais, escolhemos dividir nossas vidas com homens que possuem o mesmo nome, que torcem para o mesmo time, que são do mesmo signo – touro(nos desejem sorte - hehehe).Tadinhos, são caras legais.
Quando olhamos para trás é que percebemos que tudo que somos agora é a soma de pontos demarcados na trajetória dos anos e que são fundamentais para a construção das nossas vidas. Pontos que são estruturas, que são alicerces. Pessoas são os alicerces.  É a existência dos alicerces que nos seguram quando tudo mais começa a desabar.  A Fabi é um desses meus alicerces.
Nossas vidas tomaram outro rumo, mudei de cidade, me tornei mãe bem mais jovem do que planejava(enquanto o mundo me julgava ela me deu força nesse momento),  ela se focou nos estudos, cresceu profissionalmente com determinação e coragem. Ficamos períodos sem manter contato, e depois voltamos com força total. E mesmo com alguns desencontros nós nunca esquecemos uma da outra, sempre conseguimos manter nossa amizade intacta. E com o tempo aperfeiçoamos nosso modo de cultivá-la, não perdendo mais a oportunidade de nos ver quando estamos uma na cidade da outra, nos falando mais por MSN, e-mails ou telefone.
É uma amizade sem interesses e talvez esse seja o grande segredo da sua longa existência. São os interesses que destroem as amizades.
Na minha humilde opinião, amizade é aprofundamento, é ter tempo para o seu amigo, é realmente querer saber da sua vida e estar com ele. Podemos até ter muitos conhecidos que mantemos diálogos superficiais e parcerias de eventos sociais, mas são poucos que realmente conseguem ter a chave do nosso coração.
Tudo isso é para homenagear essa grande amiga que vai se casar no próximo sábado e sei que vou borrar a maquiagem vendo-a entrar na igreja com aquele mesmo sorrisão e aqueles olhos brilhantes cheios de alegria ao sentir mais um sonho se realizar.
E o que eu posso dizer, é que a felicidade dela será a minha felicidade, e vou estar lá com aquela cara de quem fica assistindo um filme dentro da própria cabeça, grata por poder estar ali junto em mais uma cena de um dos meus filmes preferidos. E mais do que isso, sendo um dos personagens coadjuvantes.
Amigo de verdade não é somente um telespectador da sua vida. Ele está lá, vivendo junto com você. Amigo de verdade não trata os seus momentos importantes como obrigação ou com segundas intenções.
E sem hesitar, posso afirmar que os momentos mais felizes da sua vida também farão parte dos momentos mais felizes da vida do seu verdadeiro amigo.
É isso ai. Te amo amiga, para sempre.
Te vejo sábado! 

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

É o meu irmão!



Inventam tantas datas comemorativas. Dia dos pais, dia das mães, dia dos namorados, dia disso e dia daquilo. Eu sei que são datas que muitas vezes perdem o sentido afetivo e fica somente o propósito comercial. Contudo depois que tive meu segundo filho passei a desejar a criação de uma outra data desse tipo. O dia do irmão. Que tal?
Acredito que até meu papel como irmã ficou mais verdadeiro depois que passei a acompanhar a relação entre meus dois meninos. O incrível é que mesmo o mais velho sendo uma pessoa com necessidades especiais a relação dos dois está passando por todas as etapas normais. Ciúmes, brigas, proteção, companherismo, disputa;  mesmo eles tendo universos, dificuldades e personalidades diferentes.
O pequeno Vicente observa todo o contexto familiar e a maneira como cuidamos do JV. Acorda o irmão com beijos de manhã chamando-o para tomar café e ir para a escola. Adora  passear na cestinha da bicicleta adaptada do irmão e está sempre disposto a me alcançar roupas, meias, tênis, na hora que estou vestindo o JV e quando ninguém está olhando (nessa hora que você comprova que está tudo indo bem) abraça o irmão sem receio de perder seus cabelos, e diz baixinho: Te amo João.
Infelizmente ele não tem a resposta como gostaria de ter. JV não fala. Aliás, fala somente vovó e vavá.
Numa manhã, tentando reverter a situação de frustação, iniciei o seguinte diálogo:
-Filho, sabia que o João te ama?
Vicente olha para o nada vasculhando seu pensamento.
- Não ama não mamãe. Ele não fala comigo. (nunca esquecerei seus olhinhos tristonhos me contando isso)
Silêncio para mamãe pensar. O que dizer para uma criança de 2 anos que ela seja capaz de compreender?
- Vicente, o João não sabe falar, ele tem um dodói na cabecinha. Por isso não consegue dizer que te ama mas ele te ama, olha como ele sorri para você e fica feliz quando você o abraça.
- O dodói não é na cabeça é no dente! (se referindo a um aparelho expansor que o JV usa nos dentes) E eu também tenho dodói olha!

Não adianta. Só o tempo, a vivência e o exemplo das pessoas da nossa volta é que nos fazem entender algumas situações.
Na escolinha do JV tem somente crianças com algum tipo de deficiência. Lá tem um moço, um homem de 20 e poucos anos com aparência de um menino. Ele se chama Guigo. É o irmão do meio numa família de três filhos homens. Às vezes vou levar o João e encontro algum deles entregando o irmão para as terapeutas. Fico observando a forma como eles se relacionam com o irmão especial. É muito bonito de ver o respeito e a comprensão - permitam-me essa frase manjada.
A mãe deles um dia me contou que quando o mais velho se formou em direito havia uma preocupação de como fariam com a situação pois o Guigo costumava ficar muito agitado com tumulto e palmas. Orientada pelas terapeutas a perguntar ao formando o que ele achava, se Guigo deveria realmente participar desse evento, emocionada, a mãe me contou que ele olhou para ela meio surpreso com o questionamento.
-Como assim mãe? Ele sempre esteve incluído em todos os momentos. Vamos apenas ajustar as coisas mas excluí-lo jamais. Ele é meu irmão e também quero dividir com ele minha conquista.
Eu choro agora mesmo, contando isso para vocês. Os irmãos... eles simplificam tudo. Só precisam crescer  num ambiente em que tratem a diferença com naturalidade,  sem ficar focando e exaltando a situação adversa o tempo todo.
Agora lembro outra situação que aconteceu na família do Gabriel - que possui a mesma síndrome do João. Síndrome de Angelman. A mãe Gladis me contou que quando eram pequenos o irmão mais novo brincava num campinho na frente da casa; de repente, o irmão especial saiu correndo - meio desajeitado,  ao encontro do irmão mais novo e se agarrou na tela pelo lado de fora.
Uma das crianças comentou:
- Lá vem aquele menino louco!
Eu fico aqui tentado imaginar e me colocar no lugar do menino. Como deve ter sido duro para o caçula ouvir isso e ainda ter força para responder:
 - Ele não é louco! Ele é meu irmão!
Virou as costas e com lágrimas nos olhos foi ao encontro do irmão.
Ele tem razão em defender seu irmão. Os irmãos das crianças especiais geralmente são leais, muitas vezes sofrem sozinhos com a incerteza de como agir, com as piadinhas dos colegas, com a ignorância humana.
Temos que estimular as crianças a saberem conviver com todos. Só assim e com diálogo franco e direto elas vão aprender a respeitar todas as pessoas. Crianças aprendem rápido, são curiosas, são espontâneas. Quando você perceber que seu filho fica confuso diante de uma pessoa com deficiência, ou com alguém de outra etnia, ou orientação sexual, esse é o momento de ensiná-lo que somos todos diferentes fisicamente e nos estilos de vida  mas somos todos iguais como seres humanos. Todos nós somos deficientes em alguma coisa. Ninguém é perfeito.
E então, devagar ele vai começar a apreciar e aceitar cada pessoa do jeito que ela é e você estará ajudando a diminuir o preconceito e discriminação do mundo. Além do mais, poderá sentir orgulho ao ver seu filho(a) se formando uma pessoa do bem.
Não é fácil explicar para eles e nem impossível.
Vai ter sempre aqueles pais que vão pensar "O que tenho a ver com isso?Não faz parte do meu universo!"
Meus amigos. Quem tem a bola mágica aí? Não sabemos o dia de amanhã. Quando resolvemos ter um filho não estamos comprando uma propriedade particular. Precisamos guiá-lo e tentar educá-lo para que ele contribua com a evolução humana.
Enquanto isso, vou lidando naturalmente com a vida da minha família  e na medida certa e pontual vou ajudando a construir o entendimento do pequeno Vicente.
E claro, sem deixar de elogiá-lo e beijá-lo toda vez que ele demonstra seu afeto pelo irmão.

-Meu irmão mamãe! O João é meu mano! Só meu. Não fala. Ri. É meu. Irmão.
































quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Aceitando o seu dom




Tem gente que tem o dom de falar, de convencer, de curar, de vender.
Tem gente que tem o dom de cantar, de representar, de ensinar, de prever.
Tem aqueles que sabem calcular, administrar negócios e bens.
Podemos ter apenas um ou vários dons.
Eu sei que um dos meus dons é de escrever... consigo me comunicar com o mundo e comigo através da escrita. E me encontro nessa dança de palavras que descrevem a vida.
Só preciso exercitar.
Que tal me ajudarem a trabalhar isso?
E talvez com o tempo os meus textos possam ser úteis para algumas pessoas. Sem dúvida, esta é a maior recompensa.

Abraços.

UM ANGELMAN EM MINHA VIDA



No dia-a-dia percebo em algumas pessoas a busca insistente por respostas. Existe uma pergunta latejante no olhar de cada uma delas. Como você consegue viver assim? Como consegue sorrir sendo mãe desse menino dependente, que não fala, nem caminha normalmente, que é diferente de  tão diferente? Como consegue viver assim?
De repente encontro no trajeto dos meus olhos, faces armadas de piedade e desconforto quando num descuido, o meu garoto puxa a bolsa de uma senhora no Shopping Center; solta uma gargalhada num momento impróprio; morde o brinquedo predileto ou “baba” no mar porque literalmente está diante do lugar que mais adora neste planeta. Como você pode viver assim? Mãe desse menino imperfeito?  
A compaixão sem limite impede algumas pessoas de enxergarem o óbvio, que o essencial é invisível aos olhos. A sensação de tragédia perpetua a tal ponto que muitas pessoas ainda pensam que pessoas com deficiência são um castigo para a sociedade e um fardo insuportável na vida dos seus familiares. Poucos têm a audácia de ousar pensar ao contrário e ver nessas crianças uma chance de equilíbrio e salvação para a humanidade. Mas espera aí, como você pode viver assim? Mãe desse menino anormal?
Mães de pessoas com deficiência não tem nada de coitadas. Isso não passa de conspiração e preconceito. São mulheres fortes como rochas, talvez sofridas, ou completamente cheias de afeto.Coitadas jamais. Mas como vocês podem viver assim? Coitadas sim.
Claro que temos nossos momentos de crise de ausência, de exílio pessoal, de cansaço físico e esgotamento mental. Mas quem não os tem? Cada pessoa tem seus motivos para silenciar a alma, cada um tem seu limite para dor, amor, força e fé, independente da vida que possui.
Ninguém recebe além do que pode carregar. Essa é a maior verdade que existe.
Nós mães de pessoas especiais temos uma pequena mudança no trajeto de nossas vidas, e vamos aprendendo que a vida é hoje, que o ontem é irretocável e o amanhã ninguém sabe, pertence somente a Deus.
Aprendemos que esses anjos vestidos de gente são nossos companheiros de viagem, a longa viagem da vida, e que vieram com a missão de sentarem ali do nosso lado, na janelinha do trem e com seus olhos empolgantes irem apontando para as belas paisagens que passam velozmente pelo nosso caminho. Com nossos guias particulares – anjos guias, a gente aprende a enxergar a vida do melhor ângulo e a apreciar a nossa viagem seja qual for a origem e o destino. Simplesmente porque a viagem da vida é uma benção.
Nós mães especiais, aprendemos com o tempo, que às vezes é necessário se distanciar um pouco de tudo, aceitar os pensamentos que afloram na mente inquieta, e nos permitir sofrer, chorar, lavar a alma, e assim acordar sem dor, sem culpa e renovada pelo espírito de Deus, que entra em nós através da nossa passagem secreta, uma porta especial de encontro com Ele: nossos filhos. Jamais estaremos sozinhas se aprendermos a amar essas crianças. Mas como vocês podem viver assim?
Claro que muitos sonhos tiveram que ficar fora da nossa viagem, mas não porque nossos filhos nos impediram de trazê-los, mas por que sonhos são para realizá-los ou descartá-los. E com nossos companheiros de viagem, só temos tempo para viver, não podemos carregar o que não é necessário.  Ah, mas como vocês podem viver assim?
É verdade que mães de Angelman’s padecem no paraíso ao quadrado. São emoções extremas multiplicadas por dois. A dor e o amor lado a lado e em dose dupla. No final das contas, o amor é sempre mais forte. Sempre vence.
E mesmo com a mentalidade ainda exclusiva da sociedade. Mesmo não nos vendo representadas nos comerciais do dia das mães, nós vivemos assim. Mesmo a humanidade tentando nos ignorar como se nós não vivêssemos como as outras pessoas, não comprássemos perfumes, bolsas, roupas, alimentos; nem viajássemos, muito menos namorássemos... Tudo bem, nós vivemos assim. Enquanto a sociedade nos rotula e define nossa vida como trágica(ou azar do destino), nós estamos vivendo e surpreendendo algumas pessoas que cruzam o nosso caminho e se despertam, despindo seus pré-conceitos quando nos enxergam vivendo assim, felizes assim, tristes assim, como qualquer outro ser no mundo. E percebendo que nós vivemos normais com nossos filhos tão diferentes de tão especiais. Deficientes, anjos, gente, apenas gente, como eu e você.
Filhos não são nossas bagagens, são nossos companheiros de viagem. Como você pode ser feliz assim?
Pare agora e escute meu coração.
Se você enxergar um Angelman com o coração vai entender que amor existe, que Deus existe e que Ele está ali dentro daquela criança sem maldade, sem ressentimentos, sem preconceito, sem o seu padrão de perfeição, mas repleta de milagres e de felicidade.
Você ainda quer saber como posso viver assim?
Simples então, você enxerga com os olhos e eu enxergo com o coração.